Retratos instantâneos | Fine Wines & Food Fair

Retratos instantâneos

Retratos instantâneos

4 Novembro 2019    —       8 min.



Os nove dias do Fine Wines & Food Fair são marcados por momentos especiais que demonstram o espírito de uma festa de e para amantes da gastronomia. Estes são apenas alguns instantes, nem sempre à vista dos participantes, que ficaram na memória.

 

Onde há fumo, há fogo!

Sinais de fumo. Um acampamento. Os preparativos começaram na véspera. Às 23h40, um porco com 120 quilos foi para o espeto para assar em lume brando. Com a alvorada, foram para as brasas dez borregos, quatro leitões, dez frangos do campo. Os enchidos chegaram mais próximos da hora de almoço e os legumes cultivados na Herdade dos Grous. 

Os chefs, Ljubomir Stanisic e Hans Neuner (Ocean**), atentos ao fogo, junto à charca, num domingo ameno. A equipa do Vila Vita Parc, liderada pelo anfitrião, o chef Rui Prado (Herdade dos Grous), e pelos chefs executivos Paulo Fortes e Manfred Kickmaier (VILA VITA Parc), preparavam a festa. Mais de duas toneladas de lenha de azinho para alimentar o fogo, que chegava aos 300ºC nas brasas que alimentavam as restantes fogueiras, 180ºC no iglu desenhado pelo chef que os portugueses se habituaram a ver na televisão a revelar o pesadelo que pode ser a cozinha de um restaurante. De vez em quando, rega-se a carne com os temperos. Os convivas começam a chegar e dá-se início ao BBQ Cookout.

É um espetáculo com Ljubomir em cena. A arte do fogo aprendeu-a do tio Micha, junto à fronteira com a Bósnia, com quem aprendeu a matar um porco, a pescar, a fazer o fumeiro. E agora, tudo o que ele lhe ensinou, esse impulso primário do homem com o fogo virou uma moda. Os chefs provam a carne, saboreiam, bebem também, divertem-se. Nota-se-lhes o prazer no que fazem, apesar das queimaduras nas mãos, marcas de guerra de quem cozinha. Começa a música a acompanhar o churrasco, cantares alentejanos a ecoar na planície, que voltarão no ouvido para o hotel. Para muitos hóspedes, é a experiência mais autêntica que levam de Portugal.

 

Se é para gostar de café, que seja o melhor do mundo

Só bebia chá. Nunca gostou de café, até ao dia em que a mulher lhe comunicou que ia comprar uma máquina para ela. Concordou, para a fazer feliz. Nascido em Israel, de onde saiu aos onze anos para viver na Alemanha, numa família dedicada ao tabaco ao longo de seis gerações, Amir Gehl sempre cultivou o mundo sensorial: boa comida, grandes vinhos, os melhores cigarros. Porque não explorar o café, a segunda bebida mais consumida no mundo  depois da água? Como em tudo, quis conhecer o melhor. A verdade é que a maioria das vezes o café que bebia fora de casa era pior do que o da máquina. Não percebia nada do assunto, mas quis juntar a simplicidade da máquina aos melhores grãos e notou que isso era uma lacuna no mercado. Contratou Johnny England, um dos mais prestigiados roasters mundiais, e procurou os melhores grãos, arrebatando os lotes de especialidade de topo. Marcou assim uma posição no mercado e, em cinco anos, The Difference Coffee tornou-se uma referência quando se trata do melhor café.

É o próprio Amir quem conta a história despertando a curiosidade de um público ainda ensonado, na masterclass de café, no Vila Vita Parc. Fala sobre as espécies mais comuns, Robusta, mais encorpado e intenso, e o Arábica, mais aromática e perfumado e com menos cafeína. Traça-se um mapa dos consumidores do café de especialidade, com a Austrália na liderança. Fala-se da importância da água utilizada no café (a norueguesa Voss e a portuguesa Penacova são perfeitas aliadas pelo baixo teor mineral, não alterando o sabor do café) e do leite como acompanhamento, sem cair em fundamentalismos – até vai bem com um Blue Montain, da Jamaica, admite, mas seria um crime misturá-lo num Geisha. Era aqui que todos os presentes queriam chegar: a prova de um dos café mais caros do mundo.

Amir Gehl prepara o café de filtro com todos os cuidados para que cada um dos presentes o saboreie. A curiosidade é grande por esta altura. Já tínhamos provado um grão normal e um grão de Geisha para perceber o quão aromático é, até que nos serve o famoso café do Panamá, cujos grãos crescem numa pequena plantação na Etiópia. A cor é acobreada, limpa, quase um chá earl grey no perfume e no sabor, de tão rico o bouquet. É o café com pontuação mais elevada de sempre nos concursos da especialidade (94,66 pontos em 100) e só chegaram a leilão uns modestos 45 quilos, que fizeram disparar o seu valor para quase 800€ o quilo e, nos poucos locais do mundo onde está disponível, uma xícara de Geisha custa a partir de 15€ mas há quem cobre 30€... Uma preciosidade à altura das estrelas que por estes dias andam pelas cozinhas do hotel para brilharem na Fine Wines & Food Fair.

 

Silêncio, que se vai cozinhar!

Ecoavam risadas, frases soltas em alemão ou inglês, indicações do serviço, galhofa total! Em noite de All-Stars  a movimentação na cozinha do Atlântico era ainda maior que o habitual, até ao momento de Christian Bau entrar em cena e shhhhh... O chef pediu silêncio total na cozinha. Havia algo de sagrado naquele momento de máximo respeito pela comida, pelo chef alemão, pela criação do prato  pelo artista que é Christian Bau. 

Das suas mãos já tinha saído, nas entradas, um waffle japonês com cavala, caviar e creme de ervas do mar, entretanto, preparava o seu prato principal: pregado, coração de palmeira Hawai, yuzu-koshu, xo-oil, com as influências japonesas que caracterizam a sua cozinha.  Debruçado sobre a bancada, dispunha os ingredientes com rigor. Ninguém se atrevia a murmurar uma palavra. Findo o serviço, voltou a entrar no espírito festivo da Fine Wines & Food Fair, afinal, estava entre amigos de longa data. 

O chef do restaurante Victor’s Fine Dining by Christian Bau, com três estrelas Michelin, explicaria depois que não pode haver stress à sua volta quando cozinha, que esse momento tem de ser tranquilo e silencioso para que toda a comida revele toda a paixão que deposita no que faz. É isso que o move, a paixão, tem a palavra tatuada no braço direito e faz dessa a sua máxima: “Faz as coisas com paixão ou não o faças”. Mas não se julgue que o seu restaurante é um retiro budista, ao lado da cozinha há uma sala onde toca música electrónica em alto e bom som. 


Um manifesto anti-plástico. Pim!

A imagem de um cavalo marinho a transportar um cotonete num documentário televisivo deu que pensar a Hans Neuner, que lançou o desafio à equipa de pensarem sobre o assunto. Márcio Baltazar, natural da Lourinhã, terra onde sobram apenas vestígios da existência de dinossauros, num passeio à beira-mar idealizou um manifesto em forma de sobremesa e jogou mãos ao tema em noite de All-Stars. O chef de pastelaria recriou o habitat do animal mais emblemático da Ria Formosa, que se estende por 60 quilómetros no litoral algarvio, com conchas, algas, um cavalo marinho e um plástico... 

A sobremesa quase infantil é um grito de alerta para chamar a atenção para o consumo de plástico e a forma como está a ameaçar os recursos marinhos e está a conduzir as espécies para um parque jurássico. Na Ria Formosa, a comunidade de cavalos-marinhos que chegou a ser das maiores do mundo tem vindo a desaparecer, por conta da pressão humana no ecossistema, da pesca ilegal e o fundeamento excessivo de embarcações. No fundo do prato, o retrato do que se observa no fundo do mar sobressaiu entre um menu rico em peixes e mariscos que juntou Dieter Koschina (Vila Joya), Jacob Jan Boerma (De Leest) e Christian Bau (Victor’s Fine Dining by Christian Bau) ao chef do Ocean, Hans Neuner. É urgente agir. Pim!

Ovos, só com assinatura de Thomas Allan!

Há um antes e um depois de se provar o “Eggs on Eggs on Eggs”, um dos pratos estrela do restaurante The Modern, em Nova Iorque, onde não se conseguem mesa com menos de 28 dias. Thomas Allan é há muito um chef revelação – em 2014, um dia antes de completar 26 anos, tornou-se chef na equipa de Abram Bissell, no restaurante duas estrelas Michelin, no MoMA –, mas aos 31 anos continua a surpreender e a marcar posição entre os melhores. Para o jantar a quatro mãos com o chef do Ocean, Hans Neuner, trouxe o prato sensação composto por um ovo a baixa temperatura, caviar Imperial, um brioche torrado e endro.

Se há combinações que são uma alquimia de sabores a tocar a perfeição, esta bem pode ser uma delas. Ingredientes simples, mistura de texturas harmoniosa e toda a elegância na apresentação. Foi unânime na sala a apreciação. O problema surgiu na manhã seguinte, ao pequeno-almoço: como quer os seus ovos? À Thomas Allan, “Eggs on Eggs on Eggs”... E nunca mais um ovo será apenas isso.